Daniel Alves: o Estado pode trapacear?

Alberto Becker

Publicada em 17/02/2023 - Conjur

Desde que eclodiu a notícia da prisão do jogador Daniel Alves, acusado da prática de estupro, o assunto ganhou destaque na imprensa mundial. Há uma aparente avalanche de elementos de convicção despejados em quase todos os portais de notícias, todo santo dia. Reportagens, gente opinando de forma conclusiva sobre os eventos, os quais são objeto de uma investigação em um processo criminal que tramita na Espanha, obviamente em segredo de justiça — dada a natureza dos fatos objeto de apuração —, e que está apenas começando.

Meu palpite é que a amplíssima maioria das pessoas que estão produzindo reportagens, conteúdos e manifestando suas opiniões (definitivas e condenatórias, naturalmente) jamais teve qualquer acesso aos autos, nunca manejou de verdade qualquer mínimo elemento probatório, não viu uma página sequer do processo, tampouco possui uma fonte que de fato viu os autos. Em outra formulação: as pessoas opinam em caráter peremptório, baseados no que a imprensa, daqui e de lá, diz, naquilo que os conteúdos viralizados na internet falam sobre.

Mas este escriba é advogado criminalista. Na minha experiência de mais de duas décadas trabalhando em matéria penal e atuando em diversos casos com repercussão pública, aprendi uma valiosa lição: não formar opinião definitiva sobre casos emblemáticos, notadamente aqueles com apelo midiático, com base exclusiva naquilo que é noticiado pelos veículos de comunicação, por acreditáveis que sejam.

Não me canso de dizer: punir é civilizatório, punir é necessário. Não podemos compactuar com o crime, com a violência, com monstruosidades. E o estupro é um crime gravíssimo, algo abjeto, uma sempre chocante barbárie, que, para além da violência física, dilacera a alma da vítima, causando sequelas psicológicas imensuráveis. Então, é claro que eu não quero relativizar a gravidade de um delito sexual, muito menos desacreditar o relato da pessoa que foi teoricamente ofendida. Quero apenas lançar uma luz sobre um aspecto jurídico que me chamou à atenção e sobre o qual não vi ninguém falar ainda, qual seja:

Ao cumprir seu papel de processar e punir criminosos, o Estado pode trapacear? Para mim, a resposta é não.

Caro leitor, o Direito é coisa séria! Quando o Direito deixa de proteger às personalidades das quais não gostamos, deixa de nos proteger também. A função do Estado que o encarrega de fazer uma válida e rigorosa persecução penal, com escorreita apuração do fato e com o itinerário de formação de culpa que respeite as regras do jogo, são os pressupostos da legitimidade para a aplicação de uma devida pena aos malfeitores de toda ordem — os quais devem ser exemplarmente punidos. A garantia do devido processo legal e ao amplo exercício do direito de defesa são bases indispensáveis para que uma condenação seja legítima, sem as quais não há falar em processo justo.

Meu ponto é que, quando aceitamos que o Estado possa trapacear, possa enganar, possa produzir arapucas na condução dos processos e dos procedimentos, estamos chancelando a violação aos mais comezinhos princípios do Direito. Estamos afirmando que os fins justificam os meios. E, em um caso no qual a apuração penal se acha em fase tão inicial do processo que o suspeito ou o acusado em geral não tenha tido sequer a oportunidade de conhecer o conteúdo da imputação que lhe é feita e não tenha tido ainda nenhuma oportunidade de se defender, estamos mandando uma mensagem: a repercussão midiática determina a formação da culpa e não o método do processo penal, que tem sua formulação previamente descrita pela legislação (no Brasil e na Espanha também).

E por que eu estou falando disso? Porque, segundo o mesmo noticiário que faz as pessoas bradarem por condenações sumárias e fazerem juízos definitivos sobre a culpabilidade de Daniel Alves, deu conta de que a polícia teria armado uma verdadeira cilada para o referido acusado, consistente em contatá-lo, afirmando que o estaria convidado apenas a prestar meros esclarecimentos. Algo quase banal. O jogador brasileiro, que estava residindo no México, teria espontaneamente ido até a Espanha, desacompanhado de advogado, sem saber que havia uma acusação gravíssima e uma ordem de prisão lhe esperando. Uma verdadeira bola nas costas do jogador.

O processo penal, em português ou em castelhano, não se faz com emprego de ardil por parte do Estado, ou de armadilhas para pegar o investigado em emboscada processual, desprevenido, de surpresa, quando ele sequer teve a oportunidade de saber do que é acusado e disso se defender.

Claro que, por vezes, lidamos com pessoas perigosas, foragidas da Justiça, que, para serem capturadas, depois de investigação ou processo que lhe forme a culpa e lhe demonstre a periculosidade, o risco ao processo e o risco que sua liberdade inflige à sociedade. Outras, cuida-se de investigações que precisam ser feitas na surdina, operações que visam à apreensão de materiais ilícitos, de produtos ou petrechos de crimes, de sofisticadas operações de organizações criminosas que frustrariam a ação estatal, caso não se procedesse com o elemento surpresa. Nada disso, contudo, reflete o caso de Daniel Alves.

Afora o fato da fama e fortuna, por ser um jogador de futebol mundialmente reconhecido, é um cidadão comum. E pode, sim, ter praticado um estupro, o que é grave. Como pode ser inocente. Nada justifica, contudo, que o Estado possa lhe passar a perna, induzindo-o para uma emboscada processual para prende-lo provisoriamente (ele não está condenado), como parece ter ocorrido. Justiça não se constrói com prisões a qualquer preço, com o atropelo de toda e qualquer garantia individual, por mais graves que sejam os fatos de que o processo trata.

Ao Estado é vedado praticar crimes para punir outros crimes. Ao Estado é vedado o comportamento imoral. Ele é o bastião garantidor da Justiça, e esta não pode ser imoral, mesmo que a pretexto de punir culpados de crimes abjetos. Não estou dizendo que Daniel Alves não praticou os atos que muitos afirmam que praticou (distante de um exame sério da prova dos autos, isso seria uma temeridade tão grande quanto presumi-lo culpado, conforme disse alhures). Apenas tenho que sua prisão, neste momento, e na forma que aparentemente se deu, constitui o avesso do Direito, o contrário de todas as correntes evolucionárias do moderno processo penal e, sendo assim, isso a qualifica como uma prisão ilegítima e ilegal.

Acesse: https://www.conjur.com.br/2023-fev-17/alberto-becker-daniel-alves-estado-trapacear

Daniel Alves: o Estado pode trapacear?