Narcisismo constitucional e o Direito no divã

Alberto Becker

Publicada em 29/05/2023 - Estadão

De acordo com a mitologia grega, o encantamento de Narciso consigo mesmo foi tamanho que causou sua morte. Resumidamente, a partir da contemplação da própria imagem na água, considerava feio tudo que não era o próprio reflexo. É claro que este desvanecimento do sujeito por si mesmo antecede à própria estória de Narciso, embora tenha ficado famoso por seu nome. Como também é evidente que, embora a admiração excessiva do sujeito por ele mesmo e suas aptidões - tanto físicas, quanto intelectuais - seja um tema próprio do estudo da psicanálise, ele alcança toda atividade e interação humana. Aí incluído, natural e (diria) especialmente, o Direito.

Mais especialmente ainda nos dias de hoje, em que está mais do que nunca disseminada a ideia de alguns grupos de pertencimento - refiro-me aos campos mais eriçados nos tempos atuais: Direito e Política - de que possuem valores sublimes, de que seus estatutos morais devem prevalecer sobre outros. Em outro giro: devem subjugar os demais, porque são, por assim dizer, "valores melhores" (posto que mais elevados, segundo suas próprias percepções, obviamente).

Não me proponho a trazer uma equação final aos muitos conceitos complexos que tocaremos neste pequeno texto. Sem nenhuma pretensão definitiva, não quero enclausurar o tema, antes abrir uma janela ao diálogo sobre alguns aspectos que me incomodam muito, ao longo dessas mais de duas décadas de vida dedicada ao estudo do Direito e à Advocacia. E, neste sentido, a grande batalha da vida deste escriba sempre foi a de um processo mais democrático, mais justo, no qual o Direito possa ser levado a sério e respeitado. No entanto, o que vejo crescer sem nenhuma espécie de constrangimento ou limite é o decisionismo judicial, com juízes e tribunais decidindo como bem entendem, determinando o destino não apenas das causas sob sua apreciação, mas o destino das pessoas com base nas mais absolutas e recrudescidas subjetividades, como se a atividade de julgar fosse uma escolha do julgador e o Direito não fosse processo de uma elaboração prévia e que vale para todos.

Não tenho registro de um momento mais complicado para um advogado explicar as perspectivas de um caso para um cliente. Para além da qualidade cada vez mais precária (do ponto de vista de substrato jurídico e do ponto de vista mesmo do conhecimento do que as partes efetivamente estão argumentando e postulando - no ponto, quero dizer exatamente isso: se dignar a ler o que das petições contém), um fenômeno piora a cada dia: as decisões que têm por base não o Direito e a prova dos autos, mas o sistema de crenças, a ideologia, a escolha por um perfil mais rigoroso ou não, o pertencimento a espectros políticos, a presunção, o autoritarismo, entre outros critérios exóticos, como, por exemplo, o sentimento do juiz [cujo sintoma mais evidente é a aplicação da expressão "a meu sentir"].

A doutrina, nessa quadra, vem se encarregando de fazer este enfrentamento e cumprir o seu papel, ao criticar ferrenhamente o assim chamado Narcisimo Constitucional, que nada mais significa do que interpretar a Constituição a partir dos valores pessoais do intérprete. Vou além: na nossa prática, o que verificamos todos os dias é um crescente Narcisismo Jurisdicional, que envolve todo o sistema de Justiça e, especialmente, o aparato persecutório do Estado. Como na mitologia, isso parece estar matando o Direito.

Brasil. Ano de 2023. Lá se vão 35 anos da promulgação da Constituição Federal. Já se perde ao longe o tempo em que sabíamos de cor a nominata dos 11 titulares da seleção brasileira de futebol, um símbolo nacional. Lado outro, se fosse possível falar no tal homem médio, creio que o brasileiro médio hoje saberia, se não todos, a maioria dos nomes dos integrantes do Supremo Tribunal Federal. Sou um intransigente defensor da institucionalidade do Supremo e do indiscutível papel da Corte na manutenção e na salvaguarda da democracia no Brasil (embora algumas posturas sejam, de fato, criticáveis e vejo este debate como saudável). Apenas lanço um olhar para o que esse destaque da atividade de julgar quer nos dizer e o que tem nos mostrado na vida real.

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Pois o que eu vejo advogando todo santo dia e postulando Justiça para tanta gente diferente e em casos distintos por todo país, é o grave e progressivo aumento de autoridades públicas que padecem deste desvanecimento de si mesmo, ao ponto de acreditarem que possuem aquilo que chamo "uma constituição para chamar de sua", "um código de processo penal para chamar de seu". E isso repercute uma jurisdição que muitas vezes é soberba, que insiste em não olhar nos olhos de quem atende, que não entende a natureza do serviço público de justiça, que se supõe uma casta intocável acima da própria lei, ao ponto de ignorar o que se lhes é pedido e as ferramentas para atender ou negar isso: o próprio Direito, e não a subjetividade do julgador.

Ora, o processo de atribuição de sentido ao texto da lei não está desvinculado do sistema estabelecido pelo Direito, dos princípios, regras e valores definidos por ele próprio, sob pena de invalidade. Não se pode dizer (nem decidir) o que bem entender, para que cada juiz ou intérprete dê o sentido de sua própria subjetividade à norma jurídica.

É por isso que desimporta o sistema de crenças do intérprete, pois é o próprio Direito que determina o seu conteúdo e o seu método. Não sou muito adepto a simplificações demasiadas, mas preciso me fazer entender: não é o Juiz que define isso, quem diz quais são as regras e princípios que valem e quais são os critérios de sua aplicação é o Direito.

Também é por essa explícita razão que, para ser juridicamente válida, uma interpretação não pode atribuir o sentido que bem entender ao texto. Este itinerário não está alforriado do jugo do Direito para ser preenchido com os sentimentos, com as preferências ideológicas ou inclinações quaisquer do aplicador, por melhores que possam parecer as percepções que o intérprete tem de si mesmo e de seus supostos valores sublimes. Eis a razão prática do porquê as inferências e os argumentos "a meu sentir" não são fundamentos válidos no Direito.

Viver em Estado de Direito, em sua significação mais elementar, quer dizer isso: é o método do Direito que define quais são as normas jurídicas e, igualmente, é o Direito que diz como estas devem ser aplicadas. O mais, é arbítrio.

Para arrematar, digo que todas as questões relativas ao que o intérprete e aplicador acredita podem ser buscadas em algum dogma religioso, assim como todos os temas atinentes à sua visão de mundo e, substancialmente, sua percepção de si mesmo e seus sentimentos, podem e devem ser tratados em psicoterapia ou em análise, com um bom psicanalista. Mas no Direito e no processo, jamais.

Acesse: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/narcisismo-constitucional-e-o-direito-no-diva/

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