Sobre crise durante e depois da crise

Alberto Fernando Becker Pinto

Publicada em 20/03/2020 - Jornal NH

A humanidade enfrenta um momento extremamente delicado, a pandemia do COVID-19, o Coronavírus. No momento em que escrevo este texto, inacreditavelmente, apesar de toda a experiência internacional a nos iluminar e de tantas pessoas que percebo tentando levar informação relevante para alertar a todos (luta na qual me somo), ainda vejo pessoas relativizando a gravidade da doença e dos problemas. Há uma verdadeira guerra de desinformação e memes da internet a nos bombardear nas redes sociais, os quais distorcem os fatos, causam confusão e prejudicam a capacidade das pessoas de enxergar com clareza o cenário.

Bem, o fato da epidemia e todas as gravíssimas consequências ter se iniciado na China, depois se alastrado pela Europa, para então chegar aqui,deveria ter nos dado uma “vantagem”, pois, ao olharmos para tudo que está acontecendo no planeta, poderíamos identificar o que foi feito de certo e de errado, a fim de mitigar os efeitos nefastos da doença no Brasil. Infelizmente, contudo, não é o que está acontecendo. Abro a janela hoje e, apesar de todas as advertências, vejo muitas coisas funcionando com aparente normalidade. Há uma cegueira que me revolta, pois não consigo compreender o que estão esperando.

Reprisamos todos os erros, da negação, incredulidade, teimosia, irresponsabilidade, egoísmo e ignorância. E resultado catastrófico apenas começa a dar a sua cara, com os primeiros óbitos no país. As próximas semanas serão terríveis, pois as estatísticas indicam que repetimos – e até superamos – a proliferação do vírus da Europa. Imaginem: se no primeiro mundo, onde há estrutura, o sistema de saúde não consegue absorver, o que nos trarão os próximos dias, semanas, meses? Fatalmente, será uma tragédia.

Vivemos um momento ético e existencial muito complexo. Neste contexto de uma crise pandêmica mundial, não somos mais apenas autorresponsáveis, é dizer, não determinamos apenas aquilo que acontece conosco, no âmbito individual. As nossas decisões, a nossa conduta, aquilo que fizermos em todos os momentos deste ciclo, definirão também – talvez como nunca antes – os destinos do outro. Você pode não estar em nenhum grupo de risco e pode até não “morrer por causa do coronavírus”, mas, ao não adotar as políticas de prevenção, pode estar decidindo matar.

É que, a despeito da baixa taxa de letalidade do vírus (percentual de pessoas infectadas que vêm a óbito), o número absoluto de mortes causado até aqui é assustador. E vai ficar pior. Reparem que é uma doença que, por assim dizer, começou a se apresentar em janeiro de 2020, na China. Hoje, aproximadamente 60 dias depois, segundo as estatísticas, já temos algo em torno de 220 mil pessoas infectadas e quase 9 mil mortes.O problema está na curva de transmissibilidade exponencial, que tem todo esse potencial danoso justamente porque o período de incubação, de acordo com especialistas, é de 14 dias e é assintomático. Por isso, que a proliferação desencadeou uma pandemia, sendo muito difícil combater o coronavírus, pois o indivíduo não apresenta sintomas inicialmente, não sabe que está infectado e fica circulando pelo mundo transmitindo o vírus para todos com quem tiver alguma espécie de contato. Some-se a isso o fato de que não existe, nem no chamado primeiro mundo, sistema de saúde capaz de absorver e tratar da doença caso “todo mundo” venha ficar doente ao mesmo tempo.

Vi ontem uma publicação do Financial Times – e cito esta fonte de propósito – que mostra o índice cumulativo comparado da trajetória do vírus em diversos países. Rapidamente, o Brasil vai ocupar um lugar de destaque nele, ao que tudo indica, negativamente. Mas o que me chamou à atenção foi que alguns países e localidades (destacando-se Japão, Singapura e Hong Kong), conseguiram minimizar, sensivelmente, o impacto desse vírus em sua população. O que eles fizeram? Isolamento social severo! Parou tudo, todo mundo para dentro de suas casas, saídas reguladas para comprar comidas, mantimentos, medicamentos. Só o que é rigorosamente essencial funcionando e com regras rígidas tocante às precauções.

Voltemos ao dificílimo dilema existencial e à crise ética que se desenvolve durante tudo isso. Resta comprovado que apenas duas coisas são capazes de diminuir a proliferação do COVID-19: precaução (lavar as mãos, álcool gel, máscaras etc.) e o isolamento social. Se isso diminui a disseminação da doença, quer dizer que salva vidas. E, se implica no número de vidas humanas poupadas, o isolamento social é imperativo ético. É o certo a fazer.É a única decisão moralmente legítima e, portanto, obrigatória do ponto de vista moral. Alguém me dirá: “mas isso é óbvio”. Sim, é. Porém, como disse Ram Charan: as obviedades precisam ser ditas em voz alta, porque são constantemente esquecidas.

Claro que isso tem um custo. Um custo que vai ser altíssimo, diga-se de passagem, e que, inexoravelmente, impactará a todos nós. E é por este motivo que os governos e muitas empresas custaram tanto (alguns ainda não o fizeram) a adotar ou determinar a adoção as medidas mais rígidas e suspender ou adaptar suas atividades. É evidente que todos queremos evitar ao máximo grande prejuízo de se avizinha. Mas a que preço?

Retorno ao ponto de que não somos mais responsáveis apenas por nós mesmos. Nem mesmo apenas pela proteção dos nossos entes queridos. Somos diretamente responsáveis pelo que acontece com todos, com quem a gente gosta, com quem a gente não gosta,com quem a gente sequer conhece. O lucro é uma expectativa legítima e a sustentabilidade dos negócios é uma preocupação fundamental dos gestores e dos empresários. Lado outro, proteger a economia é uma obrigação de nossas lideranças políticas, igualmente. Todavia, o primeiro compromisso tem que ser o cuidado com as pessoas, com vidas humanas em jogo. Nossa humanidade está posta à prova, e não podemos aceitar falhar miseravelmente neste teste.

Haverá um dano gigantesco do ponto de vista humano. Haverá, também, prejuízos de toda ordem para todos, porque a suspensão afetará a economia de diferentes e contundentes formas em escala global. É inescapável. Só nos resta cuidar das pessoas, para, depois, cuidar da economia, das empresas, dos nossos negócios.Trabalhando há tantos anos com gestão de crise, percebo algo comum em todas que vi até hoje: elas passam. E esta também vai passar. Quais os efeitos dela? Não sabemos ainda. Apenas que serão graves. Só nos resta enfrentar a crise econômica que virá depois desta crise sanitária. Definitivamente, não vai ser fácil.

Minha expectativa é que, paradoxalmente, de todas as mazelas humanas e de todo o drama que se descortina com esta crise, só nos resta a evolução como alternativa. Temos que melhorar, elevar nossos valores humanos, para juntos enfrentarmos este problema que, quer queira, quer não, é de todos nós. E podemos começar agora mesmo. Não precisamos esperar que um decreto do presidente, do governador, do papa, nos obrigue a fazer a coisa certa, de forma coercitiva, e promover o isolamento social temporário, compatibilizando nossos trabalhos quanto eles puderem ser compatibilizado, adaptando, sendo estratégicos, e suspendendo quando for inconciliável.Vamos ficar em casa e fazer com que nossos familiares, nossos colaboradores, nossos vizinhos, nossos irmão enfim, fiquem em casa também. Porque, além de ser nossa obrigação moral, é o gesto mais fraterno e, quanto antes fizermos isso, antes estaremos prontos para seguir em frente quando tudo isso passar. E vai passar!

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