Vida Loka

Sílvia Regina Becker Pinto

Publicada em 03/09/2020 - Leouve

Você acha que foi a nossa geração ou as que vieram depois de nós que inventaram a “Vida Loka”? Você está completamente enganado e atrasado em séculos! Voltemos, no tempo, em ao menos 200 anos e vamos encontrar em Nietzsche (1844-1900) uma boa compreensão do que seja isso.

Depois de uma vida marcada pela rejeição (pela feminista russa Lou Salomé), pela doença que o fragilizava e pela profunda depressão, depois de estudar Filologia (Ciência que estuda a origem e a construção das línguas), disciplina da qual foi professor na Universidade da Basiléia, na Suíça, o Filósofo Alemão Friedrich Nietzsche veio a formular uma crítica radical à Filosofia da época, assim como à cultura ocidental. Essa crítica envolve especialmente a condenação da Metafísica e da Moral Cristã.

Nietzsche, embora fosse um descendente de pastores protestantes, em certo momento da vida (que foi curta: durou só 56 anos), começou a questionar duramente os dogmas do Cristianismo e a Moral Cristã. Ao estudar a língua Grega, ele acabou por se envolver muito com a cultura e com a tragédia gregas e, a partir de suas percepções, desenvolveu uma genealogia na Moral, ou seja, buscou saber onde ela funda seus alicerces.

De acordo com o Filósofo, toda a realidade é composta de duas forças: as “forças apolínias”, em alusão ao deus grego Apolo; e as “forças dionísicas”, uma referência a outro deus grego, o Dionísio”. As “forças apolínias” representam a beleza, a ordem, o equilíbrio e a razão; já as “forças dionísicas” são representadas pela paixão, pelo terror, pela intensidade, pelos desejos, pela desordem e pelo caos. São, pois, os dois lados da vida humana, o lado racional e o lado passional, ou seja, uma tensão entre “o que eu devo” e o que eu realmente “quero”. Nietzsche entendeu que os gregos viviam respeitando essa dualidade, isto é, tanto o lado racional do homem quanto o lado passional e instintivo do ser humano.

Mas daí veio um rapazinho chamado Sócrates e, no meio do caminho, bagunçou esse equilíbrio. Não houve ser mais pernicioso no mundo do que Sócrates para Nietzsche. Por que? Porque Sócrates passou a conferir primazia à realidade racional, fazendo com isso o que houve de pior que poderia ter acontecido à humanidade, assim como para a Filosofia. Supervalorizando a parte apolínica da realidade, em detrimento da parte dionisíaca, criou uma Filosofia essencialmente fundada na razão, na racionalidade, ou seja, na parte racional do ser humano.

Desse modo, Nietzsche acredita que Sócrates enfraqueceu o ser humano, tornando-o algo degenerado, pois fez com que o homem passasse a não aproveitar mais aquilo que a vida tem para oferecer. De quebra, Sócrates ainda teria enfraquecido a Filosofia, acabando com a criatividade de todos os filósofos pré-socráticos.

Explico. Nietzsche se dedicou, como antes referi, ao estudo da genealogia da Moral, uma espécie de investigação histórica da formação e da construção dos conceitos de “bem” e de “mal”, é dizer, daquilo que é bom e daquilo que é mal. E ele, à vista do que percebeu da cultura grega, vai se indagar: será que esses são valores absolutos? São universais? Existe um justo absoluto? Esses valores servem para todos os seres humanos, em todos os tempos e em todos os lugares?

E Nietzsche vai dizer que não; que isso é uma construção humana; que, em algum momento histórico, em um determinado contexto social, os homens criaram a noção do bem e do mal, sustentando que eles são valores absolutos, quando, em verdade, não são.

E se não bastasse o racionalismo daquele Sócrates nefasto, havia outra pedra no caminho de Nietzsche: veio o Cristianismo e disse que aquelas criações humanas não eram humanas, mas, sim, criações de Deus. Eram valores absolutos criados por Deus. Daí a aversão de Nietzsche ao Cristianismo (o Anticristo), pois compreende que o Cristianismo produziu uma “inversão dos valores morais” cultivados pelos gregos, dentre eles, as forças dionisíacas, compreendidas como mundanas.

Nietzsche não era apenas anticristão, como não acreditava nem em Deus, tampouco numa existência pala além dessa vida concreta em que vivemos. Trabalhando com comparativos, ele vai sustentar que não existe uma única Moral, nem existe uma única verdade. Nem o Cristianismo é a única verdade possível. Ele é apenas uma interpretação possível do mundo, uma forma, mas não a única, de encararmos a realidade.

Então, Nietzsche vai afirmar que existem duas morais: “a Moral dos Escravos” e “a Moral dos Senhores”. O que é isso, Silvia? Simples. E agora você vai compreender (isso não implica aceitar) a aversão cristã de Nietzsche.

“A Moral dos Escravos” é aquela que ele também chama de “moral de rebanho”, de subserviência; aquela que não tem vontade própria; que não conduz, mas é conduzida. É a moral dos ressentidos, dos fracos, dos que se deixam dominar, centrada nas noções de bondade, humildade, piedade, fraternidade. Essa é a Moral do Cristianismo, aquela moralidade que o Cristianismo infundiu e difundiu no mundo ocidental, uma moralidade que enfraquece o homem e que o degenera; ela e ruim, em Nietzsche, pois deixa o homem pior. Faz dele um perdedor. É o homem que diz paciente “Deus quis assim” e “Deus sabe o que faz”.

Já “a Moral dos Senhores” é aquela do homem que conduz o próprio destino; daquele que decide o que é e o que não é; aquela Moral que comanda e tem consciência de si. A Moral dos Senhores é fundamentada na alegria, no prazer, na intensidade e na afirmação à vida (dizer sim à vida). Negar essas forças dionisíacas (passionais) é também negar a própria vida, segundo Nietzsche.

Então, ele se insurge contra o Cristianismo, porque, em seu pensamento, foi justamente o Cristianismo que colocou para o mundo, principalmente, para a cultura ocidental, “a Moral dos Escravos”, como se ela fosse o “bem”, o jeito certo de viver, o que fez de Nietzsche um filósofo compreendido como um niilista, um ser amoral, acusado de querer acabar com toda a vida social e com a cultura na Alemanha e no mundo ocidental.

Ao longo de sua existência e em suas obras, Nietzsche vai dizer que “o nada” é sustentar que “a Moral dos Escravos” ou de rebanho; o nada é dizer que isso é coisa boa, propondo um abandono a essa cultura moral, porque ela enfraquece os homens. Nós precisamos fazer, segundo ele, uma transmutação de valores; assumir uma “Moral de Senhores”, criando um novo ser, um “além do homem” (übermensch) ou o “Super-Homem” acima do bem e do mal (ele tem uma obra com esse nome). Nisso se compreende um estilo de vida fundada na vontade, vontade de poder, não de poder político, mas de vontade de potência, de fazer o que se quer: “Vida Loka”, em que não exista certo ou errado para além do que o próprio homem julga, individualmente, ele próprio, certo ou errado. Livre é aquele que se libertou completamente da “Moral de Escravos”; o homem cuja Moral é ele próprio.

Só para te contar o fim da história: onze anos antes de morrer, em 1900, Nietzsche sofreu um colapso mental; ficou mentalmente incapacitado e passou a ser cuidado pela mãe e pela irmã, Elisabeth Fortes Nietzsche. Esta, absolutamente antissemita (avessa a judeus), casada com uma pessoa culturalmente influente e também antissemita, se apropria da obra de Nietzsche e cria uma espécie de “edição” de suas cartas e manuscritos, extraídos de um contexto, que constituirão a Filosofia Política de Superioridade do Nazismo de Hitler, com quem a irmã de Nietzsche, mais tarde, veio a trabalhar.

Nesse cenário, a “Vida Loka” foi de um pensamento a uma catástrofe de proporções inigualáveis, atrocidades abomináveis, próprias de quem acha que não tem limites para com ninguém e que o mundo gira em torno do seu umbigo. Não quero uma “Vida Loka” para mim, acima do bem e do mal.

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